Logotipo do Jornal de Resenhas
Luiz Paulo Rouanet - 124 - Julho de 2023
Virtù e fortuna em 10 presidentes do Brasil
Foto da capa do livro Maquiavel, a democracia e o Brasil
Maquiavel, a democracia e o Brasil
Autor: Renato Janine Ribeiro
Editora: Estação Liberdade - 160 páginas
Foto do(a) autor(a) Luiz Paulo Rouanet

Neste livro, Renato Janine Ribeiro1 parte de dois conceitos centrais de Maquiavel, em O príncipe, que são os conceitos de virtù e fortuna, para analisar, entre outros aspectos da democracia no Brasil, o percurso de dez ex-presidentes do Brasil. São eles, pela ordem em que são analisados: José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva, Dilma Roussef, Michel Temer, Getúlio Vargas, Juscelino Kubitscheck e Jair Bolsonaro (lembrando que o livro foi publicado antes do término da eleição de 2022, em que Lula foi eleito). Nos cinco capítulos anteriores, incluindo o preâmbulo, o autor como que prepara essa análise dos ex-presidentes, tratando da questão da legitimidade do governante, a partir do modo como chega ao poder. Para os leitores familiarizados com a leitura de O príncipe, trata-se de distinção 1 Renato Janine Ribeiro foi Ministro de Estado da Educação, de 6 de abril a 5 de outubro de 2015. É presidente da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência desde julho de 2021, com mandato até 2023. Desde 1994, é professor titular da Universidade de São Paulo, na disciplina de Ética e Filosofia Política. Seu currículo completo pode ser acessado em: http://lattes.cnpq.br/9987610379141827 . 4JR 124 | JUL 23 introduzida por Maquiavel entre governantes (ou príncipes) que herdaram o poder e governantes (ou príncipes) novos. Assim, diz ele no Capítulo 1: “Todos os estados , todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens foram e são ou repúblicas ou principados. Os principados são hereditários – nos quais o sangue de seu senhor vem governando há longo tempo – ou são novos.”.2 Maquiavel pode ser lido, e tem sido lido, em dupla chave interpretativa, seja como manual para o governante (príncipe), seja como manual para o povo, para saber como se comporta o governante (príncipe). Daqui por diante, como falamos de uma democracia contemporânea, iremos substituir príncipe por governante. Quanto a saber se Maquiavel defende o governante ou o povo, esta é uma questão controversa. Pode-se consultar a respeito o excelente Maquiavel republicano, de Newton Bignotto.3 Em todo caso, Renato Janine, como Maquiavel, analisa apenas o segundo tipo de governante, isto é, o novo. Vale a pena, para o leitor não especializado, recordar o que são os conceitos de virtù e fortuna, já aludidos. O primeiro termo, embora possa ser traduzido literalmente por“virtude”, é usualmente mantido em italiano, pois não se trata meramente de uma virtude moral, seja em sentido cristão, seja em outro. Aproxima-se mais do conceito grego de aretê, e que é objeto de discussão de Sócrates, especialmente no Protágoras, de Platão. Ali, Sócrates e o mestre da sofística Protágoras discutem sobre a questão: a virtude pode ser ensinada? Parte da discussão gira em torno da ambiguidade do conceito de virtude (aretê), o primeiro entendendo a palavra no sentido de “excelência”, o segundo no sentido de qualidade moral. Sócrates defende que a virtude não pode ser ensinada, enquanto Protágoras diz que ela pode ser transmitida. Ao final do diálogo, as posições se invertem. 2 Maquiavel, Nicolau O príncipe. Trad. Maria Lúcia Goldwasser, 2ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 3. 3 Bignotto, Newton, Maquiavel republicano. 2ª. ed. São Paulo: Loyola, 1991. 5JR 124 | JUL 23 Assim, virtù significaria a aretê no primeiro sentido, ou seja, naquele de uma destreza, ou habilidade, em executar determinada ação, como por exemplo, tocar flauta, esculpir, adestrar cavalos, guerrear e assim por diante. É nesse sentido que Maquiavel se refere à virtù de Cesare Borgia, seu principal exemplo. Não que o famoso condottiere fosse virtuoso em um sentido moral – longe disso –, mas ele apresentava qualidades como líder que o habilitariam a manter o poder, não fosse a força da fortuna. No auge de seu poder, quando está prestes a conquistar e unificar boa parte do que hoje se conhece como Itália, morre, possivelmente envenenado. Então, nesse sentido, Cesare Bórgia teve virtù, mas não teve fortuna. Então, lançando mão desse arsenal teórico, Renato Janine examina alguns dos governantes civis que ocuparam a Presidência do Brasil, acima nomeados. Em primeiro lugar, José Sarney, em um golpe de fortuna – ou de azar, conforme a perspectiva – assume a Presidência devido à morte de Tancredo Neves, ocorrida antes de sua posse. Aliás, diga-se de passagem, isto levanta uma questão, que deixo para os constitucionalistas, a de saber se ele poderia assumir ou teria que ser feita nova eleição. Uma vez que Tancredo foi o primeiro Presidente, eleito indiretamente (pelo colégio eleitoral), talvez se tratasse de uma situação excepcional. Em 1984, o país ansiava por um governo civil, depois de vinte anos de ditadura. Mas voltando a Sarney, este pegou um país em crise, principalmente econômica. A inflação chegou a alcançar 80% ao mês! Um observador estrangeiro observou:“Realmente, 80% ao ano é preocupante”. Ao que o interlocutor respondeu:“Não, 80% ao mês!”. Foram feitas tentativas de debelar a inflação, a moeda foi alterada. A população foi convocada a fiscalizar os preços, transformando-se nos “fiscais de Sarney”. Então, Sarney chegou ao poder por um golpe da fortuna. Mas teve virtù no exercício do poder? É uma questão difícil que Renato Janine se coloca. Se teve virtù, e indubitavelmente teve alguma, tanto que conseguiu se 6JR 124 | JUL 23 perpetuar na política graças a essa passagem pela presidência, depois de ter sido líder do partido Arena, representante da direita durante a ditadura, esta não foi suficiente. Após analisar essa delicada questão, o autor conclui: “Sarney, então, teve virtù, ocorre apenas que ela não foi suficiente para uma conjuntura difícil demais. Virtù se quantifica, essa é a nossa hipótese”(p. 104). Quanto a Fernando Collor, este teve virtù para chegar ao poder, colocando-se como a alternativa vitoriosa no quadro eleitoral, intitulando-se “caçador de marajás”, não teve virtù para se manter no poder. Enfrentando também um quadro econômico desfavorável, mostrando-se imaturo para o exercício da presidência, com demonstrações de excelência desportiva, mas não propriamente como governante – o que, obviamente, remete ao último governante dessa série. Em um quadro econômico bastante desfavorável, depois de ter tentado derrubar a inflação “com um tiro só”, logo no início do mandato, acabou saindo do governo diante de acusações vindas de sua própria família. O governante seguinte, de perfil discreto, também assumiu o governo graças à fortuna, no caso, o impeachment de Collor. Teve virtù também, pelo menos o suficiente para levar seu mandato ao termo, debelar a inflação, por meio de seu ministro, Fernando Henrique Cardoso, o qual foi também seu sucessor. Retrospectivamente, o governo de Itamar, resguardados seus aspectos peculiares, como a defesa da volta do Fusca, uma espécie de “nacionalismo mineiro”, foi um bom governo, que conseguiu efetuar uma transição entre uma época tumultuada, do ponto de vista político e econômico, para um período de relativa estabilidade, que se obteve a partir de FHC e de Lula. Fernando Henrique, ainda na análise de Janine, demonstrou virtù tanto na chegada ao poder quanto no exercício da presidência. Discordo que ele tenha “desglamurizado” o exercício da presidência, utilizando palavras simples e adotando uma postura informal. Pelo contrário, penso que tinha 7 JR 124 | JUL 23 postura de estadista, no verdadeiro sentido da palavra – pelo menos naquele de John Rawls, para quem “o estadista pensa nas próximas gerações”. Mas estou de acordo quanto à avaliação de que FHC demonstrou virtù tanto para chegar ao poder quanto para mantê-lo, embora se possa questionar se demonstrou “virtude” no sentido moral. Durante seu mandato, ficou claro que, muitas vezes, a amizade deve ceder o lugar às necessidades políticas. Trata-se de uma característica da modernidade, na qual essas duas esferas, a privada e a pública, não precisam se confundir. Uma metáfora desse comportamento, ainda que se tratasse de um acidente, foi o episódio em que o carro de FHC passa em cima do pé de José Serra, seu amigo e rival na disputa pela Presidência (p. 111-112). Seu sucessor, o ex-metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva, ainda na visão de Janine, teve virtù tanto para chegar a presidência – e foram vinte anos de disputas em que Lula buscou esse objetivo – quanto para mantê-la, mesmo após o escândalo do “Mensalão”, após o que foi reeleito e ainda fez sua sucessora, Dilma Roussef. Em seu primeiro mandato, o governo de Lula realizou algo que era impensável para minha geração: o Brasil deixou de ser devedor da dívida externa. Durante boa parte dos anos 70 e 80, a dívida externa era considerada impagável e se falava em moratória. De repente, por volta do segundo ano do mandato de Lula, os jornais revelam que o Brasil não é mais devedor da dívida externa. Foi um feito notável. Se, durante a campanha eleitoral, tinha-se “medo” de que Lula tivesse uma política econômica irresponsável, surpreendentemente adotou uma política ortodoxa e conseguiu estabilizar o país. Não só isso, os índices de pobreza e desigualdade, que vinham caindo desde 2000 (ano em que se tinha cerca de 33% da população abaixo da linha da pobreza), chegaram a patamares bem inferiores. A pobreza absoluta caiu para índices inferiores a 8%, chegando a 4% em seu auge. Talvez esse sucesso tenha gerado excesso de confiança em Lula, que confiou que poderia eleger qualquer pessoa para o cargo. E, de fato, sua candidata, Dilma Roussef foi eleita como sua sucessora. De perfil mais 8JR 124 | JUL 23 discreto, de “gerente”, talvez tenha sido alçada a um cargo acima de sua competência e temperamento. Não descarto, também, a possibilidade de ter havido misoginia no processo que levou a seu desgaste e consequente impeachment, no início de seu segundo mandato. Teve virtù suficiente para ser reeleita, mas não para se manter no poder na segunda vez. Independente da avaliação se foi um golpe ou uma destituição legal (Dilma foi inocentada, posteriormente, das acusações de “pedaladas”fiscais, o pretexto para sua destituição), estou convencido de que os fatores que levam a um impeachment são dois: políticos e econômicos. Nesse sentido, pode-se remeter à célebre máxima:“é a economia, estúpido!”. No caso de Dilma, tratou-se de uma combinação de ambos os fatores. Dilma foi inábil para dialogar seja com o congresso, seja com seus subordinados (a exemplo da ruptura com Temer), e, além disso, enfrentou uma situação de descontrole econômico, associado a denúncias de corrupção na Petrobrás e em outros órgãos, não nos esqueçamos disso. Nesse caso, a discussão sobre a “legalidade” de sua deposição vira uma questão vencida. Em resumo, Dilma chegou ao poder pela fortuna (de outros, aliás; veja-se capítulo VII de O príncipe) e demonstra virtù para se manter no poder durante o primeiro mandato, mas não para terminar seu segundo mandato). Por uma questão de espaço, e para deixar o leitor se remeter ao livro de Renato Janine, de fácil e agradável leitura, não examinarei os casos dos presidentes que faltam: Temer, Vargas, JK e Bolsonaro. Para terminar, gostaria de elogiar a iniciativa, cada vez mais frequente, de livros autorais por parte de filósofos analisando conjunturas atuais. Newton Bignotto, de quem já falamos aqui, é outro exemplo de intelectual que não se furta à necessidade de analisar os tempos presente. 

LUIZ PAULO ROUANET é Professor da UFSJ 

Luiz Paulo Rouanet é professor da PUC.Campinas.
Top